No dia 21 de Março, a Biblioteca da EB 2/3 Avelar Brotero oferece aos seus leitores três poemas de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa.
Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
- Tirava os brincos do prego,
Casava c´um homem cego
E ia morar para a Estrela.
Mas, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria tua mãe?
-(Ela conhece-me a fundo.)
Que há muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.
E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
- Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.
Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
- Então, filho, nada feito,
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.
Comunicado pelo Engenheiro Naval
Sr. Álvaro de Campos em estado
de inconsciência
alcoólica.
Álvaro de Campos
[1/10/1927]
Símbolos? Estou farto de símbolos...
Uns dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos...
Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem...
Que a terra seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa
E ele rompe das nuvens e aponta para trás das costas
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...
Bem, vá, que tudo isso seja símbolos...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se menos,
O sol entre farrapos findos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doira a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde se demorava outrora (mora perto) com o namorado que a deixou?
Símbolos?... Não quero símbolos...
Queria só - pobre figura de magreza e desamparo!-
Que o namorado voltasse para a costureira.
Álvaro de Campos [18/12/1934]
NOTAS SOBRE TAVIRA
Cheguei finalmente à vila da minha infância.
Desci do comboio, recordei-me, olhei, vi, comparei.
(Tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar cansado).
Tudo é velho onde fui novo.
Desde já - outras lojas, e outras frontarias de pinturas nos mesmos prédios -
Um automóvel que nunca vi (não os havia antes)
Estagna amarelo escuro ante uma porta entreaberta.
Tudo é velho onde fui novo.
Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto.
A casa que pintaram de novo é mais velha porque a pintaram de novo.
Paro diante da paisagem, e o que eu vejo sou eu.
Outrora, aqui, antevi-me esplendoroso aos 40 anos -
Senhor do mundo -
É aos 41 que desembarco do comboio
O que conquistei? Nada.
Nada, alias, tenho a valer conquistado.
Trago o meu tédio e a minha falência fisicamente no pesar-me mais a mala...
De repente avanço seguro, resolutamente.
Passou toda a minha hesitação
Esta vila da minha infância é afinal uma cidade estrangeira.
(estou à vontade, como sempre, perante o estranho, o que me não é nada).
Sou forasteiro, tourist, transeunte.
É claro: é isso que sou.
Até em mim, meu Deus, até em mim.
Álvaro de Campos [8/12/1931]
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